16 abril, 2011

Part(ida)

"A dor de perder alguém em vida é pior do que a dor da morte, porque é o nunca mais de alguém que se poderia ter, já que está vivo e por perto."
Não houve tempo pra despedidas, para trocas de olhares, para um adeus. Você ficou lá, no 3º andar, olhando o movimento da rua oposta, sem acreditar que eu iria. E eu fui. Duas bolsas, alguns trocados e toda coragem do mundo nas costas. Fui sem bater a porta, fui devagar para ver se você ia olhar para trás, para ver se você iriar reagir a minha fuga. Eu fui e você não fez nada. Mesmo sabendo que nada mudaria se vocês brigasse, gritasse e me colocasse de castigo, queria que você ao menos tivesse tentado. Queria sair com a impressão de a omissão não faz parte da sua constituição básica. Mas, nada disso ocorreu. Você ficou e eu fui. Cheguei na rua e olhei para o apartamento. Apartamento de uma vida vivida. Olhei e respirei profundamente, como se quisesse inspirar as raras boas lembranças que tinham no ar. Vi algo sendo jogado da janela do 3º andar e uma cortina sendo fechada em seguida. Olhei para ver o que era: um porta-retrato espatifado com uma foto no parque, anos atrás. Eu, você e Pequena. Você queimou na foto o rosto dela com o cigarro, renegando -a . E sobrou apenas nós duas. Agora olhando a foto, vejo que também tenho o rosto apagado pelo calor do cigarro.O fato de você ter jogado aquilo pela janela, demarcava que você me renegava também. Mas, já não importa. Eu saí para não te odiar mais. E é isso que estou decidida a fazer. Pergunto -me onde foi parar o amor que outrora você sentiu. O amor por mim, o amor por Pequena. O amor próprio.


"Comece - ironicamente - seguindo o conselho de quem deixou de te amar. Cuide de você."
Me dirigi a estação pensando nos acontecimentos das últimas semanas, as últimas bebedeiras, as últimas humilhações, e um único pedido de refúgio. E eu disse sim a ele. Você sabe, isso é realmente uma fuga; não estou indo morar com alguém por amor, ou por nada disso. Só quis ficar longe e o casamento me pareceu uma boa alternativa. Ou a única alternativa. Não foi o que eu sonhei, mas será melhor que o pesadelo nosso de cada dia. Entrei no taxi. O  celular tocou, número desconhecido. Quando atendi, a voz mais confortante do mundo me perguntou onde eu estava. Pedi que ela se acalmasse, que eu já chegaria. Pequena pediu que eu fosse com cuidado. Desligou. Pensei em todo plano novamente: encontrar Pequena  na estação de trem, ir para o fórum da outra cidade, assinar os papéis e ir para a nova casa dos outros. Provavelmente meu futuro noivo não vai reclamar da presença de Ana por lá. Ele é bonzinho. Vai gostar de cuidar da minha irmã mais nova como se ela fosse uma filha dele, mesmo sabendo que não se adota mais as crianças depois que elas já tem 20 anos, como Ana. Não que se deixe de ser criança nessa idade. Se ele morrer ao menos estarei com ela.


"Ô menina, veja bem… Ouça uma boa música, leia um bom livro e bola pra frente. Pode parecer clichê, mas funciona. Vá por mim."
Cheguei na estação ferroviária, avistei distante a Pequena com uma mala pequena e um celular na mão. Me aproximei, e sem falar nada ela me abraçou e foi me arrastando pela mão esquerda para sentar no banco. Ela não falava nada, eu não falei nada. Ouvi Pequena ligar para o trabalho e avisar que não iria mais. Desligou na cara do chefe que pedia justificativas. Ao mesmo tempo a angústa se refletia no movimento que eu fazia de puxar a aliança do meu dedo para cima e para baixo. Pelo horário, se não estivesse nublado daria para ver o pôr-do-sol. Meu celular tocou, meu noivo me perguntou pela terceira vez se não achava melhor ir me buscar. Disse pela terceira vez que não. Engraçado como nós dois somos pessoas de poucas palavras. Nos conhecemos a anos e quase tudo entre nós fica subentendido. Mas, nem tudo fica bem explicado. Não que eu me importe com isso. Ouvi o apito do trem, nos chamando para entrar. Ana levantou na minha  frente e disse um quase inaudível "Mana, vamos ?" com um certo ar de dúvida.

"Eu queria ir pra um lugar onde eu tivesse uma sensaçãozinha, ilusória que fosse, de que tinha alguém prestando atenção em mim."
Peguei a bagagem, entrei com uma certa vagareza, ela também. Nós esperávamos a mesma coisa, que você no último minuto tentasse intervir, na vã tentativa de salvar os anos perdidos. Nada. Sentei, Ana ao meu lado pegou um livro e começou a fingir que lia. Dez minutos e o trem parado no mesmo lugar. Dez minutos e meus olhos começavam fechar. Não sei quanto tempo mais se passou, até que ouvi o maquinista dizendo que o trem se atrasaria. Como se ele já não estivesse atrasado. Como se eu não estivesse atrasada.  Olhei rapidamente para a estação, já coberta pela neblina noturna. Olhei pela janela. E aí os nossos olhos se encontraram. Você olhava fixamente para mim, uma expressão firme e eu não sabia o que queria dizer. Tive vontade de fechar a cortina da janela, demonstrando que agora já era tarde. Tive vontade de descer correndo e abraçar você, para depois voltar para o trem com a certeza de que você consentia com minha ida. E não fiz nenhum dos dois, prossegui te olhando. Você disse alguma coisa para mim, e eu não soube interpretar o que era. Entendi que você estava me deixando ir, e que queria que eu fosse feliz. Entendi que você pedia desculpas a Ana. Entendi não pelas suas palavras, mas pelas lágrimas que eu via. E então, você pegou uma sacola e despejou seu conteúdo no lixo. Suas garrafas amigas estavam ali, indo embora na lixeira da estação; suas carteiras amigas também ficariam por lá. Olhei pra o lado e Ana estava lá, chorando por ter te visto. E finalmente o trem começou a andar e nenhuma de nós deu tchau uma para a outra. Eu me enchi de orgulho por você ter escolhido a você mesma, finalmente. 

Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas... Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros
Ana apertou minha mão e se encostou no meu ombro e me perguntou se eu achava que você ficaria bem. Respondi que sim. E ouvindo o som do trem, voltei a adormecer e sonhei com o momento que voltaria para lhe mostrar que agora você tem netos. Sobrinhos - netos, quero dizer. Foi o hábito. É que tia você nunca foi. Perdeu-se no caminho e virou mãe. Até o dia que perdeu as estribeiras e deixou de ser tia, deixou de ser mãe. Deixou de ser você mesma. Você sabe.


“Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.”
 É isso. Agora já estou casada, já vi minha nova casa, já acomodei Ana. Meu esposo lhe manda um abraço. Ana também. Não sei se vamos manter contato. Obrigada por ter dado essa nova chance para você. Fique bem, minha mãe. Eu amo você.

Afetuosamente, 

Christiana(com uma ajuda de Caio F de Abreu) 


Se você chegou até aqui significa que você conseguiu ler todo o texto, que ficou meio super extenso. Passei 11 dias pensando em todos os desfechos possíveis para essa carta, e mudei ela inúmeras vezes. Essa foi a forma de acabar que mais me agradou, mas tenho certeza que teriam outras que talvez ficassem melhores. Obrigada a voces que leem/comentam por aqui. Amplexos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Vc não imagina a raivinha q fiquei qd vi o tamanho do texto q vc escreveu! Mas qd li as primeiras linhas me encantei e quis ver o resto. O meio, o fim, o começo! Já o li todo, agora vou reler.