20 setembro, 2023

Sob a ótica de outros olhos

"Nada pode ser tão ruim que dure para sempre"  é o mantra de quase todo dia, quando eu lembro que tenho mais um dia de trabalho servindo e preparando raviólis e bruschettas. Meu nome é Rita, tenho 28 anos e todas as coisas não ocorrem por minha culpa, como dizem numa novela qualquer. Trabalho na Masiero e Sorrento desde os 24 anos, quando cansei de esperar arranjar um emprego digno e guardei meu diploma de licenciatura em teatro. Sonho em ser cantora, ou ser pesquisadora e fazer um grande estudo antropológico em outra cidade, ou escritora de novela, ou professora de piano, ou talvez atriz, já que sou formada nisso,  mas enquanto a sorte não sorri para mim, continuo educando as gêmeas Bianca e Chiara Sorrento e vivendo com um italiano escandaloso e bigodudo que num dia de chuva, depois de muitas conversas e investidas - não por amor, nem por paixão e sim por ter sido convencida pela boa companhia e pela segurança que uma vida estável apresenta - eu disse "sim" no altar e passei a chamar de marido. Não é o tipo de início muito romântico de história, mas depois de um tempo assinando seu sobrenome, descobri que amor é convivência e paixão, conveniência. Comecei a achar o casamento com ele algo fantástico: tinha alguém para conversar, para me dar uma vida confortável, para aquecer meu pé a noite, para me aguentar e para me satisfazer sexualmente - eu deveria frisar esse aspecto, porque Sorrento quase me fez acreditar que casar com ele seria uma grande furada e que minha vida sexual seria zerada, mas olha, nesse ponto ele me surpreende todos os dias - como nunca antes. Não vou dizer que ADORO minha vida de casada, mas, prefiro viver com ele, tendo requeijão light pra comer, criando as filhas que não pari, do que na casa de amigos, aventurando o pão de cada dia, fumando maconha - que Sorrento nunca leia isso - para esquecer as portas fechadas na minha frente, pensando em como será o amanhã. Já falei que meu emprego é uma merda ? Gerencio - e sirvo, e atendo, e ouço reclamações e cozinho, e recebo cantadas - um dos restaurantes do senhor meu marido. É um porre. Geralmente fico na minha, no escritório, nas redes sociais, mas nos últimos 8 meses Catulo vem exigindo que eu participe mais das atividades do resturante. Já contei que quero ser escritora ? E é aqui que entra esse diário: hoje de manhã vi uma propaganda falando sobre o concurso cultural, para que você escreva sobre você e seu dia. Essa é a minha proposta: um diário semanal sobre a rotina. O prêmio: uma coluna na revista que promove o concurso.

Dia 11 de maio, 13:30 minutos, Masiero e Sorrento do shopping Viamão

O único restaurante tradicionalmente italiano da região é esse, localizado no shopping, o último que Catu abriu. Eu prefiro atender por aqui, as pessoas estão mais urgentes, conversam mais, fazem disso aqui um fast  food refinado, elas são mais interessantes do que as pessoas que costumam frequentar as outras franquias. Quase sempre vem clientes diferentes por aqui, desde famílias inteiras trazendo as crianças para comer pizza, até executivos fechando grandes negócios e políticos de pequeno porte pensando nos próximos atos corruptivos. E eu sirvo, cozinho, converso, sugiro, atendo, limpo, só falto pegar no colo e balançar. "Hospitalidade italiana", é o que Catu sempre recomenda. Hoje já veio o grupo de jovens do telemarketing, já veio o cantor que toca piano e canta clássicos italianos - e agora tenho que segredar que as vezes ele toca alguma música do momento a pedido de algum cliente - e a poucos instantes veio o rapaz fardado com a camisa da loja de departamento do andar inferior. Tempos atrás, ele vinha com uma moça para esse restaurante, uma criatura petulante que ria como uma hiena Depois passou uns dois meses sem voltar aqui e desde a semana passada voltou a frequentar o restaurante. Ele nesse momento está sentado perto da porta olhando o relógio, olhando as pessoas passando, olhando pra mim e sorrindo, enquanto balanço os cabelos e escrevo, correspondendo o sorriso.  Gosto dessa simpatia dele, penso que ele deve ter quase minha idade, penso que ele parece que é universitário, penso que ele não deve ter carro ainda, penso que eu sou uma mulher casada com italiano gordo e engraçado e mãe de gêmeas e que acha muito prazeroso trabalhar nesse restaurante ao invés de estar me prostituindo na rua por falta de um emprego que me permitisse bancar pelo menos um chuveiro elétrico e depois dessa última constatação, volto a observá-lo como o cliente assíduo e simpático que ele é e vou caminhando lentamente em direção a mesa dele, como se nada mais fosse importante no mundo do que atendê-lo - e eu observo ao redor e vejo que temos uma criança pequena e a babá comendo spaghetti e derramando suco de uva, um grupo de senhoras pedindo canellone, o pessoal do telemarketing agindo como se estivesse no McDonalds e mais adiante outros tantas pessoas comendo apressadamente pra poderem voltar logo aos respectivos trabalhos, logo minha afirmação anterior sobre a pessoa a quem eu irei me dirigir está correta - e ele me cumprimenta com a cordialidade de sempre, me chama pelo nome e diz que ainda não vai pedir nada, que está esperando alguém chegar, mas que agradeceria se eu falasse com o músico pra tocar Chico Buarque no momento em que a companhia dele chegasse. (Pausa para anotar tudo isso). Levanto os olhos. Não consegui conter a curiosidade e perguntei se era a moça das outras vezes e ele sorriu e disse que não, que dessa vez não era alguém que tinha alergia a orégano e a sal, e a pimenta e a pratos quadrados e eu saí satisfeita já que não era a única que a achava nojenta. Poucos instantes depois fui para cozinha, verficar se o talharim do executivo já estava pronto, porque ele estava com cara de que se eu demorasse mais um pouco para apresentar resultados sobre o almoço dele, ele atravessaria a faca que estava na mesa ao lado pela minha garganta. Odeio gente que vem irritado do trabalho e acha que porque paga caro pode fazer o que quer com todos ao redor . Tenho vontade de gritar "Sou Rita Sorrento, "dona" dessa restaurante, mas sou formada e por falta de um emprego que me desse dinheiro o suficiente para ter uma vida estável aos 25 anos escolhi o caminho mais fácil que foi casar com o Catulo e ele é um ótima pessoa mas eu não o amo e nem por isso eu estou jogando uma panela de água fervente em vocês por causa do meu desconforto". Enquanto estou enfurecida por dentro e sorrindo por fora, ouço um baque e o barulho de uma cadeira caindo. Acho que isso é algo que deve -se anotar ( não estou anotando tudo, isso ainda é um rascunho e eu estou escrevendo isso para mim mesma, só para lembrar que essa texto ainda não é a versão que eu enviarei, mas eu sou esquizofrênica o suficiente para conversar comigo numa folha de papel. Noto que passei tanto tempo me explicando que perdi o motivo porque a moçoila caiu no chão.) Vejo uma moça um pouco mais alta que o normal, usando uma blusa de personagem de desenho animado, usando dessas sapatilhas caras de plástico, provavelmente não antiderrapantes e com um laço. Odeio laços. Fico em dúvida o que mais me aborrece naquela criatura o fato de ver o piso molhado e passar por ele ignorando a placa ou aquele ar de "sou meiga, sou pura, sou fofa, tenho um lacinho tatuado na virilha". (apagar frase anterior)  Levanta colocando os cabelos pra trás e fazendo um coque. Observo tudo isso pelo vidro da cozinha. Olha pra os dois lados e avista o rapazote que trabalha na loja de departamento. Ele faz sinal para a moça e ela pensa em sorrir, mas não mostra os dentes. Sigo ela com os olhos, ele levanta abraça ela e eu conto o tempo do abraço: 3 segundos. Pelo que entendo de abraços, eles não estão morrendo de saudades ou estariam demorando mais se abraçando. Ele me chama depois de uns 10 minutos conversando com a garota e o seguinte díalogo ocorre (nao exatamente assim, já que eu anotei só quando sai de perto deles)
 - Rita, lembra do favor que eu te pedi ? Pode ser agora ? - ele fala isso sem me olhar diretamente, com os "erres" puxados, com um sotaque sulista
- Certo, faço isso agora... - e o nome daquele cliente fugiu da minha mente, como se eu nunca soubesse qual era antes, fechei os olhos e veio o nome na hora  e eu falei muito alto - DODI!
- Dodge ? - interrogou a moça que estava do lado -  Como o  carro da música ?
- Não, como o homem que morreu com a Diana. Dodi. É um apelido. George é meu nome de fato
(George é um nome muito atraente, hmmmmmm.
Pausa, porque nesse momento eu percebi que aquela moça não sabia o nome dele e que eles estavam sentados na mesma mesa tinha exatos 16 minutos - olhei no relogio naquela hora para saber. Em que mundo é esse que as pessoas não perguntam os nomes quando conhecem as outras. E quando pessoas desconhecidas almoçam juntas ? Não, nesse momento em que eu paro pra pensar isso não faz sentido)

- Larisse. Sim, com "e". Mas, chama Lara que eu prefiro. Prazer.
( Ou foi Clariss...? Pausa de novo. O que esses dois falavam antes que vieram se apresentar agora ????)
Silêncio, daqueles monstruosos e eu estava achando que isso tinha a ver comigo estar ali intimidando o casal, acenei com a cabeça e saí. Dei um passo para trás e ouço a Clarissa, Larissa, Laura, a dita cuja me chamando:
- Rita, você pode me levar ao banheiro ?
Suspirei na hora bem discretamente, ainda de costas porque acho que pessoas com mais de cinco anos já podem ir para o banheiro sozinhas, mas fiz o favor de levá-la, porque não queria me insdispor com o rapazote. Note que ela não me pediu para mostrar onde era o banheiro e sim para ir até lá com ela. Fomos andando em silencio, ela com aquele tique de prender o cabelo. Falou num tom muito baixo comigo "preciso colocar minhas lentes de contato" Parei na mesma hora e entendi que a moça era míope o suficiente para não ter visto a placa de piso molhado.